quarta-feira, 20 de março de 2013

Os Leões, Moacyr Scliar, 1968


"Na sessão inaugural de um congresso médico, eu, de terno e gravata, assistia enlevado a um discurso, quando, de repente, comecei a suar. O colarinho me pareceu subitamente apertado, tentei afrouxá-lo, mas os dedos não me obedeciam, se alongavam (horror) como garras (até peludas, creio!) e, quando vi, minha mão direita empunhava uma caneta esferográfica! Tomado de um impulso irresistível corri para uma sala reservada, e lá, em meio a convulsões espantosas, escrevi Um Conto. Ao colocar o Fim, as coisas voltaram ao normal e pude retornar ao salão de festas, onde minha ausência não tinha sequer sido notada."

* * *

Hoje não, mas há anos os leões foram perigo. Milhares, milhões deles corriam pela África, fazendo estremecer a selva com seus rugidos. Houve receio de que eles chegassem a invadir a Europa e a América. Wright, Friedman, Mason e outros lançaram sérias advertências a respeito. Foi decidido então exterminar os temíveis felinos. O que foi feito da maneira que se segue.

A grande massa deles, concentrada perto do Lago Tchad, foi destruída com uma única bomba atômica de média potência, lançada de um bombardeiro, num dia de verão. Quando o característico cogumelo se dissipou, constatou-se, por fotografias, que o núcleo da massa leonina tinha simplesmente se desintegrado. Rodeava-o um setor de cerca de dois quilômetros, composto de postas de carne, pedaços de osso e jubas sanguinolentas. Na periferia, leões agonizantes.

A operação foi classificada de "satisfatória" pelas autoridades encarregadas. No entanto, como sempre acontece em empreendimentos desta envergadura, os problemas residuais constituíram-se, por sua vez, em fonte de preocupação. Tal foi o caso dos leões radioativos, que tendo escapado à explosão, vagueavam pela selva. É verdade que cerca de vinte por cento deles foram mortos pelos zulus nas duas semanas que se seguiram à explosão. Mas a proporção de baixas entre os nativos (dois para cada leão) desencorajou mesmo os peritos mais otimistas.

Tornou-se necessário recorrer a métodos mais elaborados. Para tal criou-se um laboratório de treinamento de gazelas, cujo objetivo primário era liberar os animais do instinto de conservação. Seria fastidioso entrar nos detalhes deste trabalho, aliás muito elegante; é suficiente dizer que o método utilizado foi o de Walsh e colaboradores, uma espécie de brain-wash adaptado a animais. Conseguido um número apreciável de gazelas automatizadas, foi ministrado às mesmas uma forte dose de um tóxico de ação lenta. As gazelas procuraram os leões, deixaram-se matar e comer; as feras, ingerindo a carne envenenada, vieram a ter morte suave em poucos dias.

A solução parecia ideal; mas havia uma raça de leões (poucos, felizmente) resistente a este e a outros poderosos venenos. A tarefa de matá-los foi entregue a caçadores equipados com armamento sofisticado e ultra-secreto. Desta vez, sobrou apenas um exemplar, uma fêmea que foi capturada e esquartejada perto de Brazzaville. Descobriu-se no útero da leoa um feto viável; pouco radioativo, o animalzinho foi criado em estufa. Visava-se, com isto, a preservação da fauna exótica.

Mais tarde o leãozinho foi levado para o Zoo de Londres onde, apesar de toda a vigilância, foi assassinado por um fanático. A morte da pequena fera foi saudada com entusiasmo por amplas camadas da população. "Os leões estão mortos!" - gritava um soldado embriagado. - "Agora seremos felizes!"

No dia seguinte começou a guerra da Coréia.